quarta-feira, 7 de abril de 2010

O risco da fragmentação

A crise financeira e económica, que parece, como foi notado, o primeiro efeito consolidado da globalização, anuncia a urgência de atender ao risco de a fragmentação política remeter a regulação do mundialismo para data incerta. A ilusão de os ocidentais terem ganho a guerra fria, com o símbolo na queda do Muro de Berlim, quando realmente se limitaram a não a perder, levou, em todo o caso, à forte dominância da convicção de que o neo-liberalismo económico era a regulação conveniente e festejada da regulação, ou, para usar uma palavra a cair em desuso, da ordem a tender para conceder, ao desenvolvimento geral, o novo nome da paz.

A encíclica Caritas in Veritate, por agora remetida para a marginalidade de outras inquietações a exigirem exemplaridade, pelos fins de 2009 desenvolveu uma crítica sobre o mercado, mas que, em todo o caso, já participava do facto de o voo da coruja começar ao entardecer.

João Paulo II tinha sido alertado, não tanto pelo saber económico, mas antes pelo amor da justiça social, para, com a Centesimus Annus, tornar claro que se a palavra mercado indica "um sistema onde a liberdade do sector da economia não está enquadrada num sólido contexto jurídico que a coloque ao serviço da liberdade humana integral e a considera como uma dimensão particular desta liberdade, cujo centro seja ético e religioso", então o "sistema sociocultural de referência" tem resposta negativa.

Durante o muito longo período do sistema, um negativo tempo, de proeminência da estratégia de "maximização do lucro", as funções da ONU foram enfraquecendo, mas as regionalizações pareceram fortalecer-se, com modelo observável na União Europeia em processo de alargamento e reformulação da governança. Tomando como referência, não apenas temporal, o facto de a Hungria ter agora antecipado o apelo ao Fundo Monetário Internacional (FMI), o reforço dos interesses nacionais parece crescer nos apelos das populações atingidas, as quais nunca tiveram seguro conhecimento da política furtiva que orientou as transferências de soberania e os mecanismos de substituição, mas estão a perceber pela dureza dos efeitos os erros das políticas seguidas. A imprensa americana parece dar já mostras de referir com distância a experiência europeia, e não é seguramente o interesse atlântico, mais preferivelmente visto agora como interesse ocidental, aquele que faz com que a nova Administração americana procure, isoladamente, aproximar-se da nova Rússia, começando pelo novo e insuficiente equilíbrio formal das armas de destruição maciça, procure uma cooperação consolidada com a China, e seja reverente com o Japão.

As reticências alemãs, a especificidade da atitude inglesa perante a crise, os pedidos de reformulação do FMI, o afastamento de Kofi Annan e da consistência das suas políticas, a discussão sobre se também os Estados podem abrir falência, são apenas sinais, entre outros, de que o globalismo é um facto estabelecido, mas a regulação é uma ambição de projecto distante, fragilizado pelo risco da fragmentação ocidental. Aproximando-se a discussão, em Lisboa, do conceito orientador da NATO, todos os sinais de risco de fragmentação pedem um estadismo responsável, e não duvidar que enfraquecem o multilateralismo.

A experiência da administração republicana foi suficiente para alertar no sentido de que nenhuma potência pode reclamar-se de capacidade global, que o Ocidente se perfila como sociedade de risco em face do resto do mundo que tratou como cera mole, e que a noção de Nação indispensável, que os EUA sustentam, continua a ser verdadeira em relação ao Ocidente, nas circunstâncias actuais. Mas todo o desvio do multilateralismo, inspirado pela identidade cultural e de circunstância, enfraquece a política do diálogo participado que o multiculturalismo, a diversidade de experiências e as memórias históricas não apagadas apontam como o método disponível de rever o pluralismo e renovar em paz a ordem mundial.

Professor Adriano Moreira in Diário de Notícias de 6 Abril 2010

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